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Voraz e mortal, a Covid-19 começou a assombrar o mundo em 2020. Soluções até então desconhecidas exigiram mapeamento para ontem. Uma união de forças global sempre cedentes conseguiu o inacreditável: vacinas em tempo recorde – e os esforços já dão resultados, ainda que mais lentos do que gostaríamos.

A pressa e a mobilização em torno da pandemia fazem falta em outra crise: a climática. Talvez porque esta se compare mais a uma doença crônica, que se instala lentamente. Embora nos confrontemos com dados alarmantes há pelo menos duas décadas, fica a sensação de que o problema pertence a um futuro distante. Pois não só pertence ao presente como estamos atrasados no combate. “A hora da ação que pode mudar o destino da humanidade é agora”, reforça o arquiteto e urbanista Rodrigo Mindlin Loeb, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Do ponto de vista da arquitetura, já possuímos os remédios necessários – basta dar uma olhada na seleção de projetos desta reportagem. “Desde o pós-guerra, quando acirrou-se a visão extrativista que explora a natureza para além de qualquer limite, testemunhamos a formulação de ideias de ecologistas e do conceito de desenvolvimento sustentável, as conferências da ONU sobre meio ambiente etc. Isso tudo influenciou o pensamento e a atuação também no terreno da arquitetura”, prossegue Mindlin Loeb.

Quatro correntes nesse campo, todas com um significativo prefixo em comum, engrossam as fileiras pela manutenção da vida: bioarquitetura, biofilia, biourbanismo e biomimética. “Estas vertentes trazem a noção de que o simbolismo do domínio não cabe mais, que somos parte da natureza e é tempo de nos conectarmos com ela sob a perspectiva do cuidar, do bem viver, com responsabilidade individual e coletiva”, resume o arquiteto. Para tanto, é crucial ouvir cada vez mais outras áreas. “Sem dúvida, carecemos de uma abordagem transdisciplinar, porque os desafios são sistêmicos e complexos. Isso inclui dialogar com as pessoas, os moradores das cidades, os povos originários, as comunidades tradicionais, os cientistas”, finaliza.

Conheça, a seguir, cada uma das tendências bio na arquitetura e de que forma elas agem sem esperar o próximo alarme tocar:

BIOARQUITETURA: FOCO EM REGENERAR

O setor da construção carrega o peso de consumir cerca de 40% de todos os recursos naturais do planeta, em especial água, matérias-primas e energia. Nos últimos 20 anos, abriram-se diversas frentes para tentar diminuir essa carga. Sob o guarda-chuva da bioarquitetura, nasceram denominações como bioconstrução, arquitetura ecológica, bioclimática e arquitetura sustentável. Todas com a mesma intenção: aliviar os impactos ambientais dos projetos. Surgiram, assim, os selos de green building (LEED, AQUA, Procel Edifica, Casa Azul, BREEAMe outras), que imprimiram novos parâmetros para a escolha de produtos e tecnologias.

Na esteira, a indústria de materiais se organizou para lançar itens que oferecem economia de água e energia, além de uma origem e fabricação mais verdes. “Houve muitos avanços nesse período aqui, no Brasil, mas todos com o foco em mitigar efeitos, sem alterar profundamente a maneira como o segmento funciona. Hoje vemos que isso não basta no contexto das mudanças climáticas. O empreendedor deve rever sua estratégia de negócio e entender que pode lucrar sem destruir, não somente reduzindo impactos, mas regenerando as cidades”, defende Mindlin Loeb.

Eis o ponto central no portfólio do Snøhetta, escritório sediado em Oslo, na Noruega. Sua atuação exemplifica o que parece ser o novo horizonte da bioarquitetura mundial: não mais prédios que consomem menos energia, mas, sim, capazes de gerá-la. Isto quer dizer: funcionam como miniusinas para suprir a própria demanda e, quando possível, injetam o excedente da produção na rede pública de distribuição. “Neste momento de pandemia e crise climática, devemos trabalhar com mais responsabilidade, descarbonizar os empreendimentos e ajudar a impulsionar os padrões da indústria em relação ao que significa erguer prédios e cidades sustentáveis”, afirma Kjetil Trædal Thorsen, um dos sócios-fundadores do Snøhetta, autor do projeto mostrado na abertura desta reportagem.

BIOFILIA: AMOR À VIDA

Na biofilia, a reconciliação com a natureza é questão de saúde, conforto e bem-estar. Não faltam estudos científicos comprovando que a proximidade com ambientes naturais, plantas e animais faz bem às pessoas, melhora a produtividade, a qualidade do sono e a autoestima e reduz o tempo de cura de pacientes internados. Na Malásia, um exemplo primoroso desse conceito é o Factory in the Forest, vencedor do concurso arquitetônico para a sede da empresa de eletrônicos Paramit. “Consideramos o máximo contato com árvores, cheiros, texturas, luz e ventilação naturais durante todo o dia e para todos os funcionários”, diz o arquiteto britânico John Bulcock, diretor do escritório Design Unit.

“No início, a biofilia restringia-se ao green building corporativo, centros de saúde e escolas. Hoje já falamos nisso para casas, especialmente agora que passamos mais tempo nelas”, afirma Felipe Faria, CEO do Green Building Council Brasil. Recentemente, a entidade apresentou a certificação LIFE de conforto, saúde e bem-estar para projetos de interiores residenciais. “Nas categorias de avaliação, a biofilia aparece quando sugerimos a presença de vegetação, de água, iluminação natural abundante, vistas para áreas verdes e até quadros com imagens de natureza”, explica.

Em São Paulo, a incorporadora Idea!Zarvos prevê lançar o Floresta, empreendimento residencial de oito pavimentos na Vila Ipojuca, com fachada biofílica e paisagismo inspirado na Mata Atlântica assinado por Rodrigo Oliveira. “Entre as duas torres, haverá um grande jardim sensorial, que traz memórias afetivas do interior e promove uma imersão na natureza. Esse tipo de jardim naturalista, intuitivo e meio desordenado é tendência mundial”, afirma o paisagista. “Pensamos em gerar conforto também para o bairro, com uma fachada atraente e que respeita a baixa densidade da região e o clima bucólico, de poder andar na rua e ter espaços de encontro com mais verde”, afirma Otavio Zarvos, sócio-fundador da empresa.

BIOURBANISMO: ESCALA URBANA

Bioarquitetura e biofilia se fundem no biourbanismo, que busca reinserir a natureza nas cidades e torná-las mais resilientes às mudanças climáticas com renaturalizações de rios, hortas comunitárias, jardins de chuva contra enchentes e áreas verdes que resgatam a arqueologia da paisagem, termo caro ao paisagista Ricardo Cardim. “Um exemplo é a proposta de revitalização da avenida Champs-Élysées, em Paris. Sai de cena o paisagismo tradicionalista, que impõe uma estética de dominação com espécies exóticas, e entra a biodiversidade local”, defende Cardim, cuja equipe trabalha hoje em 90 frentes com esses princípios. Um dos pioneiros dessa visão, o arquiteto Adrian McGregor, fundador e diretor global de design do estúdio McGregor Coxall, de Sydney, Austrália, sustenta que o futuro da humanidade depende das biocidades.

“Precisamos planejá-las a partir de uma abordagem holística, integrando os sistemas vivos (cidadãos, alimentos, paisagem, água e resíduos) aos não vivos e seus fluxos (economia, energia, infraestrutura, mobilidade e tecnologia)”, comenta ele, que pesquisa o tema há 15 anos e comanda os estudos para a Shenshan Bio City, na China. “O país ainda constrói cidades à medida que se urbaniza, e o governo definiu metas de carbono zero porque está de olho no crescimento populacional nos próximos 50 anos”, justifica.

BIOMIMÉTICA: A NATUREZA É O MODELO

Em 1996, em Harare, Zimbábue, um shopping Center chamou a atenção do mundo. Em parceria com a construtora Arup, o arquiteto Mick Pearce desenhou o Eastgate Center com um sistema de resfriamento natural de ar que imita um cupinzeiro. “Observar a natureza nos ajuda a achar soluções tecnológicas para questões de estrutura, impermeabilidade, adaptabilidade e tantas outras. Este é o objetivo da biomimética”, elucida o arquiteto Marko Brajovic, adepto da premissa. “Do mesmo modo, temos de aprender com os indígenas, tecnólogos da floresta”, sugere.

Voz expoente no assunto, o arquiteto britânico e autor do livro Biomimicry in Architecture (Biomimética na Arquitetura, em tradução livre, RIBA Publishing, 176 págs.), Michael Pawlyn, defende esse tipo de design como algo revolucionário. “O design sustentável convencional apenas tenta ser menos ruim. É necessário ganhar escala global com impacto positivo líquido. Está longe,mas é possível e será um ponto de virada da civilização”, avalia. Segundo ele, o conhecimento acumulado em 3,8 bilhões de anos do mundo vivo pode combinar-se ao melhor da engenhosidade humana.

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por, Giuliana Capello, Casa Vogue

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